A irmã Myri é uma monja contemplativa portuguesa que vive no Convento de São Tiago Mutilado, em Qarah, na Síria. Tem 35 anos, frequentou até ao 2.º ano de Medicina Veterinária e a experiência de viver a guerra num convento de clausura, que já esteve cercado mas é um espaço inter-religioso que acolhe quem precisa de ajuda e foge da guerra e da perseguição.

Nasceu a 19 de maio de 1981 em Lisboa e viveu sempre na freguesia do Milharado, em Mafra.
Lisboa. Maria Lúcia Ferreira foi batizada a 22 de novembro de 1981, e quando optou pela vida religiosa na Congregação das Monjas da Unidade de Antioquia passou a chamar-se de irmã Myri.

DNPJ: Quando e como viu nascer a vocação à vida contemplativa?

Irmã Myri: Foi sobretudo durante o Jubileu do ano 2000, Jesus foi-me seduzindo o coração e desapegando das coisas do mundo até ao dia em que me manifestou claramente o que queria.

DNPJ: Que profissão queria seguir ou a vida consagrada/religiosa sempre foi opção?

Irmã Myri: Gostava muito de biologia e acabei por escolher a medicina veterinária. A vida consagrada nunca foi uma opção até que o Senhor me tenha indicado a via a seguir.

DNPJ: Porquê a Congregação das Monjas da Unidade de Antioquia? Resumidamente qual a sua história?

Irmã Myri: Primeiro entrei na Família Monástica de Belém, mas 7 anos depois, precisando de ajuda espiritual confiaram-me à Madre Agnès-Mariam de la Croix para um discernimento. Acabei por ficar porque comecei a sentir alguns frutos mas sobretudo porque o Senhor não me deixou partir…

É uma comunidade recente fundada num antigo mosteiro do séc VI em ruínas, que a comunidade reconstruiu. A Madre Agnès era carmelita no Líbano e recebeu um apelo para trabalhar mais de perto pela unidade original da Igreja, dos cristãos entre eles e com os judeu-cristãos, como descreve o cap.11 dos Actos dos Apóstolos, com o fim de preparar a última vinda do Senhor, restaurar as ruínas…

DNPJ: Como foi a adaptação a uma cultura completamente diferente?

Irmã Myri: No início não foi muito fácil. Vivo sobretudo no mosteiro, não são muitas as vezes que saio. No entanto o maior desafio acaba por ser a convivência com as pessoas de 12 nacionalidades que habitam actualmente no mosteiro!

irma-myri-3DNPJ: Como é o dia-a-dia no mosteiro?

Irmã Myri: Temos os tempos da recitação da liturgia diária, principalmente as matinas e as vésperas do rito bizantino e a missa em rito latino, a não ser quando vem o padre da vila para a celebrar no rito bizantino. Depois cada um tem um trabalho que lhe é confiado para o serviço diário ou subsistência da comunidade, dentro do mosteiro ou nos terrenos à sua volta. Temos também tempos de oração silenciosa, solitária ou comunitária, e de leitura espiritual.

A comunidade está aberta ao acolhimento de pessoas que visitam o mosteiro ou querem passar uns dias ou mesmo alguns meses e também asseguramos o serviço necessário a esse acolhimento. Agora com a guerra não temos tido muitas visitas, mas antes a gestão de contentores de ajudas humanitárias que nos chegam, vindos sobretudo de benfeitores da Europa, assim como outros trabalhos necessários à ajuda humanitária de mais alto nivel, como o trabalho de secretariado por exemplo.

DNPJ: Como é viver perto do conflito armado onde de um lado está o autodenominado Estado Islâmico, do outro do Governo sírio contra os rebeldes e estão todos contra todos. A confiança em Deus aumenta?

Irmã Myri: Claro que sim, vê-se que tudo, especialmente a nossa vida, está nas suas mãos e que protege os que n’Ele confiam. Em definitivo nada é seguro: só se pode contar com Ele! E sente-se uma imensa compaixão, urgência de rezar por estas almas perdidas que não conhecem o Senhor, mas que foram manipuladas para se entregarem a tamanhas violências e também pelas vítimas a todos os níveis.

DNPJ: Vive no Convento de São Tiago Mutilado, em Qarah, há 8 anos. Como era a Síria quando chegou e como está agora. Como se alterou a sociedade e como acompanhou essa situação?

Irmã Myri: Dizia-se que a Síria era um dos países mais seguros do mundo. Apesar de a maior parte não ser muito rica, as pessoas viviam bem, não se viam pobres na rua, um país que era economicamente independente e sem divida externa, saúde e educação gratuita… e isto era o mais importante!

Agora, segurança há pouca, os preços subiram pelo menos 10 vezes mais, muita gente sem casa, a indústria está destruída, não há trabalho, a juventude está a fugir do país por medo ou falta de esperança ou a morrer na guerra… muita gente nem os seus campos pode cultivar porque não é seguro. Um país produtor de gás e petróleo onde hoje falta o gás para a sua população e o carburante nas bombas de combustíveis… A maior parte dos médicos e outros licenciados deixaram o país… nós acompanhamos a situação sobretudo pelos desabafos das pessoas que comunicam connosco.

DNPJ: Que opinião tem da Primavera Árabe e das suas consequências?

Irmã Myri: A Primavera Árabe foi um slogan lançado de uma revolução que parecia já planeada e preparada que parece só ter levado a consequências drásticas nas sociedades, não houve nenhum efeito de renascimento e liberdade como parece sugerir o termo, mas de instabilidade, morte e destruição.

DNPJ: Como é que um convento de clausura se relaciona com a sociedade?

Irmã Myri: Antes de mais não é um mosteiro de clausura estrita. Antes da guerra era sobretudo a Madre, a irmã ecónoma ou o porteiro que tinham as relações com o exterior. Agora os laços com a vila, e não só, são mais fortes, pois houve um grupo que se formou à volta do mosteiro que distribui ajuda humanitária a toda a região e às vezes mais longe.

A nossa Madre teve que fugir do mosteiro e o Senhor abriu-lhe as portas para trazer ajuda à população em muitas vertentes e o Crescente Vermelho também confiou ao mosteiro e nós a este grupo o seu trabalho de apoio à região. Por isso hoje o mosteiro é bastante conhecido na região e um pouco por toda a Síria e as pessoas estão muito reconhecidas.

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DNPJ: Como é que fenómenos dos migrantes e refugiados também alterado a vossa forma de vida. Receberam refugiados, de que religiões?

Irmã Myri: Recebemos alguns refugiados muçulmanos mas poucos, porque era perigoso: por sermos a maior parte estrangeiros na comunidade, podia haver raptos, (e depois os cristãos tiveram sempre outros lugares onde se refugiar ou emigraram) e porque não podíamos, por estarmos perto de uma linha de frente, junto ao cerco das montanhas da fronteira com o Líbano. Foi sobretudo a urgência e gerência da ajuda humanitária que alterou mais a nossa forma de vida.

DNPJ: Qual importância do mês outubro missionário para quem vive em terras de missão?

Irmã Myri: Já estou a escrever atrasada… Na verdade nem sequer estou a par pois não sou directamente missionária e depois com a guerra a nossa atenção está muito mais voltada para o que se passa no terreno, para rezar pelo que se passa ou ajudar as pessoas. Muitas vezes nem estamos a par dessas iniciativas da Igreja mas agradecemos sempre muito a oração!…

DNPJ: Esteve nas Jornadas Missionárias 2016 em Fátima. Em 2015 as irmãs deram ao santuário três balas e um lenço que vitimaram cristãos perto de vocês. Que importância tem a mensagem mariana de Fátima para vocês?

Irmã Myri: Muita! Nossa Senhora veio trazer uma mensagem profética muito importante para nos dar chaves que permitem ler os acontecimentos actuais e os sinais dos tempos à luz de Deus. Tem sido para nós uma mensagem de uma imensa consolação, apoio e esperança.

Não esquecer que o milagre do sol foi certamente um dos sinais do fim dos tempos de que fala o Evangelho e actualmente o perigo de uma guerra mundial atómica está de novo iminente. Muito, muito nos tocou e alegrou que o Santuário tenha benzido uma Imagem de Nossa Senhora para ficar na diocese da martirizada cidade de Alepo.

DNPJ: Como conseguiram as balas?

Irmã Myri: Alguém que conhecia o sucedido, depois que o exército sírio limpou a antiga e conhecida vila cristã de Maalula dos terroristas, conduziu a nossa Madre até à casa das vítimas e as balas ainda lá estavam caídas no chão. Ela apanhou-as todas, cerca de 40. São mártires, porque foram mortos por não quererem renunciar à fé cristã.

DNPJ: Como é feito o diálogo inter-religioso na Sìria? Como é que vocês relacionam-se com outras religiões, mais propriamente o Islão?

Irmã Myri: Não esquecer que os sírios são em primeiro lugar um povo habituado a conviver com as diferenças étnicas e religiosas, a aceitar a pluralidade da população nativa do país, a viver unidos mesmo se de vez em quando há divergências, às vezes graves.

Para nós o principal é acolher com a caridade própria dos cristãos que nos foi transmitida por Jesus e pelo Espírito Santo. E é sobretudo isso que lhes toca. Depois muitas vezes estão curiosos por saber como rezamos e fazem perguntas sobre Jesus para comparar com o ensinamento dado pela sua religião. É que no mosteiro estão mais à vontade, porque fora do seu meio social, onde tal busca poder-lhes-ia acarretar problemas, visto que a posição social de cada religião ou etnia está, em muitas situações, bem definida para defender a paz e a unidade do país.

Foto: João Cláudio Fernandes

Foto: João Cláudio Fernandes

DNPJ: Que mensagem e testemunho se pode dar aos jovens em processo de discernimento vocacional?

Irmã Myri: Creio que a coisa principal que todos nós cristãos devemos ter bem presente é que esta vida é passageira, por isso pouco importante, e fazemos bem de não nos instalar muito nela porque uma vida eterna que nunca passará nos espera, que encontraremos tanto melhor quanto melhor a prepararmos vivendo o melhor possível o nosso apelo de batizados e o que esse dom significa. Tendo esta visão, creio que muitas coisas se simplificam… os inimigos da alma perdem a sua força e ela pode então ver mais claro o caminho a seguir, voltar-se para o interior  e estar mais disponível para que o Senhor a venha habitar. Depois, é Ele quem fala… é o segredo único d’Ele com a alma!… E Ele fala também muitas vezes através das promessas que nos deixou na Escritura: elas falam do que está já inscrito na nossa alma e quanto mais fé tivermos nelas mais isso Lhe agrada!…

DNPJ: Que importância têm estes encontros – Jornadas Missionárias; Jornadas da Pastoral Juvenil, Fátima Jovem, JMJ – para ajudar os jovens muitas vezes a discernir o seu caminho seja como consagrado, nas missões, a constituir família?

Irmã Myri: Também eu na minha juventude participei em vários desses encontros e senti que é sempre uma ocasião propícia para a passagem do Senhor, um peregrinar, já que são momentos em que, se são bem vividos, há um sair da vida habitual,uma busca e abertura da nossa parte que pode ser providencial para escutar algo que o Senhor nos queira dizer. E depois encontram-se muitos jovens com a mesma busca e muitos testemunhos dos que já têm experiências e isso encoraja a caminhar. No entanto o Senhor pode muito bem escolher precisamente a vida quotidiana para nos falar ao coração.

(Fotos cedidas por João Cláudio/Missão Press)

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