Numa exposição de arte no Seminário Maior dos Olivais em Lisboa uma tela de tamanho médio, de cores sóbrias atraía irresistivelmente o meu olhar de cada vez que entrava na sala onde se encontrava.

Refiro-me à Ceia de Emaús, de Rembrandt. Muitas vezes pus-me a ouvir o que me dizia a pequenina tela; muitas vezes, no silêncio abafado do Seminário, imaginei ouvir esses dois homens que tiveram o privilégio de serem nomeados testemunhas de Deus Ressuscitado, esses dois peregrinos, esses dois homens com os quais todos nos parecemos.

A sala está cheia de sombras; não vemos as paredes. A luz parece provir do próprio Jesus Cristo. Sobre a mesa, no meio da toalha lisa, está o pão, absolutamente impregnado dum sentido sacramental. Jesus reza; pronuncia talvez a bênção que permitirá reconhecerem-no. Dentro de momentos, partirá o pão. Os dois homens são representados naquele mesmo instante em que o espírito é esclarecido, quando alguma brecha se abre na opacidade da ignorância e da rotina. Esta claridade que os ilumina, de onde vem? Um deles esboça um gesto de retraimento, o outro de adoração suplicante. No mais íntimo do coração, sentem que os queima “essa chama dentro de nós” de que dão testemunho. Jesus vai desaparecer, mas aquele fogo da alma dentro deles não se apagará.

O mistério Pascal está ali, todo inteiro: o mistério da Presença.

Iam pela estrada fora, cheios de angústia e de desespero. Seria necessário duvidar de tudo, da justiça, da humanidade, do mundo, visto que Ele tinha morrido esse que deixara a mensagem de amor e de esperança e que com uma simples conspiração de sacerdotes fora derrubado? Tudo parecia perdido, aniquilado: eles próprios estariam condenados a voltar à vida sombria, em que o cansaço dos afazeres quotidianos cede o lugar ao cansaço ainda maior de os ter terminado.

E eis que tudo se modificava misteriosamente e a existência deles passava a ter um sentido diferente. O companheiro que subitamente haviam descoberto no meio deles – onde? Como? Poderiam dizê-lo? -, reclamava-lhes uma atenção total, que lhes comprometia todas as forças da alma. Porque (seria unicamente em obediência aos longínquos costumes da hospitalidade judaica?) lhe teriam eles dito ao mesmo tempo: “Fica connosco, porque principia a noite.”?Bastara aquela refeição, aquele gesto de partir o pão, aquelas palavras de amor pronunciadas, para tudo neles se tornar claro; a mesma refeição para a qual todos nós estamos convidados.

Eram, na verdade, homens como nós, homens simples e pobres; não eram apóstolos nem discípulos dos primeiros, e desconheceremos sempre os seus nomes. Se Cristo quis aparecer-lhes, terá sido precisamente por isso, porque não eram nada, nada a não ser os precursores do enorme rebanho que no dia seguinte constituiria a Igreja, os nossos antecessores, em suma, e as nossas testemunhas junto da Presença. Sem dúvida teriam seguido Jesus e ouvido algumas vezes os seus ensinamentos. Sem dúvida. Mas não o bastante para que a sua vida inteira fosse transformada e abandonassem tudo. Homens, como disse, e homens iguais a nós!

Mas tinham fé. À medida que Ele lhes falava, durante o caminho, alguma coisa estremecera neles e os acordara do sono da inconsciência: alguma coisa que morava neles como uma secreta expectativa que ia ser satisfeita. Que tinham feito para merecerem essa graça enorme?? Pouca coisa, talvez!: simplesmente, não se terem oposto à Graça; tinham sido permeáveis ao sopro divino. Esta lição de boa vontade, de fé aceite, é agradável de ouvir. Será verdade que isso basta?

Certamente, não é muito fácil. E é por isso que um deles faz esse gesto de retraimento e de surpresa. Mas há também o outro discípulo de Emaús, cujo gesto nos dá a resposta. No silêncio da razão, uma oração, um gesto de mãos que se unem. Uma alma aberta; nada mais nos é pedido.

E eis que tudo o que esta página sublime do Evangelho nos diz se cumpre. Olhai para os rostos desses homens, vede a luz que misteriosamente neles transparece, reflectindo a do rosto divino. Têm o coração tão quente que, indiscutivelmente, a presença se lhes impôs, e já sabem que ela jamais os deixará, porque está em qualquer de nós “mais íntima em nós do que nós próprios”, como dizia um santo e um poeta. Vai acompanhá-los nas suas tarefas quotidianas e até no extremo dos desgostos e da ansiedade. Sabem agora que não estão abandonados.

Uma vez mais, fico muito tempo imóvel e mudo, diante do pequeno quadro de Rembrandt. Olho para esta cena que resume, pelo génio dum mestre, a dialéctica do destino humano. Abrirmo-nos à Graça, consentir a sua entrada.

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