João Luís Inglês Fontes
Historiador

Na origem da festa do Corpus Christi: um papa e uma beguina

A 11 de Agosto de 1264, encontrando-se então em Orvieto, o papa Urbano IV emite a bula Transiturus de hoc mundo, pela qual institui, para toda a Igreja, a festa do Corpus Domini, do Corpo do Senhor, a ser celebrada na quinta-feira após a oitava de Pentecostes, ou seja, na semana a seguir à solenidade da Santíssima Trindade.

Dedicada de modo particular à exaltação do Santíssimo Sacramento, a origem desta festa encontrava-se intimamente ligada à diocese de Liège, na Bélgica, de onde Urbano IV era originário. Aí desempenhara, com efeito, importantes funções como arcediago e certamente acompanhara os esforços dos seus prelados no sentido de afirmarem a autonomia da sua autoridade face às intromissões dos poderes leigos e de reforma da vida religiosa no interior da diocese; pudera ainda acompanhar de perto o florescer das comunidades de beguinas, dessas mulheres que, sem fazerem qualquer profissão religiosa ou integrarem qualquer Ordem, viviam sós ou em pequenas comunidades, no interior das cidades, procurando, na pobreza, na castidade e com base no seu trabalho e no desempenho de obras de caridade, seguir a Cristo. Estes grupos espelhavam bem o desenvolvimento de uma espiritualidade mais afectiva e intimista, particularmente atenta à meditação dos sofrimentos de Cristo e dos seus mistérios. A humanização da figura do Salvador ia a par com uma crescente devoção eucarística, pois nas espécies consagradas o próprio Cristo atestava a sua humildade e se fazia, de forma única, acessível aos crentes. Aí podia ser visto, adorado e saboreado.

Urbano IV estimava estes grupos de mulheres, sabendo-se que chegou a escrever um Libelo da regra e vida das beguinas, com diversos conselhos sobre o seu modo de vida e espiritualidade, infelizmente perdido. A muitas destas mulheres se reconheciam importantes dons no discernimento e aconselhamento espiritual e não raro se lhes conheciam experiências místicas, marcadas também por sonhos e visões. Entre essas mulheres, uma certa Juliana (c. 1193-1258), que servia na leprosaria anexa ao convento premonstratense de Mont Cornillon, em Liège, fora desde cedo objecto de certas revelações por parte do próprio Cristo, que deixaria registadas, mais tarde, por meio da biografia escrita pelo seu confessor. Uma delas, ocorrida possivelmente em 1208, permitira-lhe ver uma lua cheia, manifestada em todo o seu esplendor, mas cuja forma esférica era escurecida e quebrada num dos seus segmentos. O sentido de tal visão ser-lhe-ia mais tarde revelado pelo próprio Cristo: a lua era imagem da Igreja, e a fissura que a atingia significava a ausência de uma festa que permitisse aos fiéis a compreensão e valorização adequada do mistério eucarístico.

Diocese do Porto

A mensagem transmitida por Juliana de Mont Cornillon a favor de uma nova festa eucarística seria bem acolhida pelo bispo de Liège, Roberto de Tourotte, que a viria a estabelecer na sua diocese por meio de uma carta pastoral em 1246, poucos meses antes de morrer. A iniciativa seria bem acolhida por outros grupos religiosos no interior da diocese, nomeadamente pelos dominicanos e cistercienses, que acabariam por contribuir para a sua disseminação além das fronteiras de Liège. Em 1264, menos de uma década volvida, Urbano IV dava o seu aval para que a celebração de Corpus Christi se estendesse a toda a Igreja.

A definitiva sanção pontifícia

O investimento pontifício nesta nova festa eucarística seria definitivamente assumido pelos papas posteriores. Urbano IV morre pouco depois de emitir a bula que impunha a sua celebração a toda a Igreja e crê-se que muitas das cartas que ordenara para que tal determinação fosse dada a conhecer ao conjunto da Cristandade nunca tenham sido efectivamente enviadas. Mas os seus sucessores, Clemente V e sobretudo João XXII, retomariam o interesse em promover a implementação da mesma festa. O primeiro ratificaria a sua celebração no contexto do Concílio de Viena, em 1312, por meio da bula Si dominum, que viria a ser incluída nas Clementinas, uma compilação de leis canónicas publicada em Outubro de 1317; João XXII, o responsável pela conclusão desta obra, por bula de 1318, juntar-lhe-ia uma oitava e uma procissão solene, que deveria ocorrer após a celebração eucarística.

O papado mostrava-se consciente das potencialidades e vantagens da sua celebração generalizada. Ela poderia – e foi-o, de facto – um momento privilegiado de afirmação da ortodoxia católica, não só quanto à afirmação da presença real de Cristo nas espécies eucarísticas, como no reconhecimento da necessidade do ministério ordenado para que essa mesma presença do Salvador no pão e no vinho pudesse acontecer. Muitas heresias vinham, desde há séculos, contestando muitos destes aspectos. A criação de uma nova festa eucarística e a sua extensão, tão do agrado popular, por meio de uma procissão pública, permitiria estender e reforçar esse reconhecimento e veneração.

Daí também o cuidado posto na elaboração de todas as peças litúrgicas que envolviam esta festa, desde os textos para a celebração da Eucaristia (orações, antífonas, peças para o canto) até ao ofício divino e ao próprio ritual que deveria envolver o cortejo processional. Embora inicialmente encontremos diversas versões, mais locais, dos textos que deveriam ser recitados ou cantados nesse dia, acabaria por vingar um conjunto de composições que parecem dever muito à pena e à obra de S. Tomás de Aquino, que o próprio João XXII viria a canonizar em 1323. Estes permitiam seguir a reflexão do douto dominicano, que acentuava a tríplice divisão escolástica na apresentação do mistério eucarístico, como memorial da paixão de Cristo, actualização da sua Páscoa, necessária para a unidade do corpo da Igreja – pela comunhão que os fiéis estabelecem com Cristo e entre si – e penhor da glória futura. A procissão eucarística iria também buscar à procissão do Domingo de Ramos muitos dos seus elementos inspiradores, retomando desta as tonalidades triunfais da entrada de Cristo, agora constituído como Senhor, na inteireza do seu mistério, transportado em glória, no meio de aclamações e manifestações de alegria, pelas ruas de aldeias, vilas e cidades.

Ordem de Malta

A difusão da festa em tempos medievos e modernos

Importa, contudo, reconhecer que a sanção pontifícia, dando um definitivo impulso à extensão da festa de Corpus Christi a toda a Cristandade, acabou, em larga medida, por vir acolher e sancionar a crescente popularidade da sua celebração e o quase espontâneo surgimento de uma procissão a ela associada. Com efeito, mesmo em Portugal, bem distante da diocese belga onde esta festa teve a sua origem, encontramos documentada a sua celebração desde 1266 em Coimbra e, em 1294, já encontramos referência à realização da respectiva procissão eucarística, bem como ao prolongamento dessa festa por meio de uma oitava, também em Coimbra, cerca de 1307.

Rapidamente, a festa de Corpus Christi, com a sua procissão, tornar-se-ia numa das mais importantes celebrações do calendário litúrgico. Ela respondia, de facto, à forte devoção eucarística que marca a espiritualidade medieval dos finais da Idade Média, particularmente centrada no desejo de contemplar a hóstia consagrada, momento particularmente valorizado numa celebração dita numa língua estranha à maioria dos fiéis e em larga medida desempenhada quase exclusivamente por clérigos, sem participação do resto da assembleia. A procissão permitia prolongar esta possibilidade de “ver a Deus”, estendendo a presença santificante de Cristo na hóstia consagrada às ruas das aldeias, vilas e cidades por onde era triunfalmente transportado e por todo o corpo social, que em cuidada hierarquia era ordenado no interior do cortejo processional. Daqui se compreende como, para a mentalidade popular, a procissão acabou por ser sobrevalorizada no conjunto dos momentos celebrativos que marcavam o dia de Corpus Christi.

O período pós-tridentino, claramente marcado pela necessidade de defesa do dogma católico face à contestação protestante, virá acentuar a importância desta festa, no quadro da valorização e diversificação das devoções eucarísticas (surgem neste período outras práticas, como as Quarenta Horas ou o Lausperene). Esta não perderá a sua força nos séculos XIX e XX, alimentada por novas correntes de espiritualidade, que tenderam a acentuar reforçar a dimensão reparadora destes actos de devoção eucarística.

Desafios a outros olhares

A reforma litúrgica promovida pelo Concílio Vaticano II viria recentrar a questão, colocando o enfoque na celebração eucarística e na sua relação com o mistério pascal de Cristo, e relacionando as suas manifestações mais secundárias, como as procissões, com uma nova eclesiologia de comunhão. O cortejo eucarístico torna-se assim manifestação daquilo que a Igreja é e vive na Eucaristia: corpo de Cristo, povo a caminho para o Reino e sinal para o mundo da vida nova que Jesus oferece a todos os homens.

 

SNPC A procissão do Corpo de Deus em tempos medievos
Os concelhos desde cedo aparecem como responsáveis pelo financiamento da procissão que, após a eucaristia, devia percorrer as ruas da vila ou cidade. Não se coibiam em gastos para que fosse realçada a dignidade do sacramento e o esplendor e fausto da procissão que o devia acolher e, com ele, o brio e importância da própria vila ou cidade. Todos os corpos sociais deviam estar presentes – assim o obrigavam as posturas municipais e a própria legislação do reino -, cuidadosamente organizados e hierarquizados. A alegria do momento traduzia-se no engalanamento das ruas e casas, na música e danças que acompanhavam a procissão, nos momentos teatrais para ela preparados, em regra com motivos bíblicos ou hagiográficos, nas muitas figuras alegóricas preparadas pelos diferentes grupos sociais. A par da Virgem, de Cristo e dos figuravam seres mais estranhos – dragões, serpentes, monstros. O que estes sinalizavam de caos e desordem reforçava afinal o poder ordenador de Cristo e a sua vitória sobre o mal.

Gil Vicente e a procissão do Corpo de Deus
A inclusão de representações teatrais na procissão do Corpo de Deus aparece desde cedo documentada entre nós. A importância do acto justifica inclusive a encomenda de textos a importantes dramaturgos. Assim aconteceu com Gil Vicente, que sabemos ter composto pelo menos dois autos para esta festa, por encomenda régia: um em 1504, dedicado à figura de S. Martinho, representado perante a rainha D. Leonor, na igreja de Nossa Senhora do Pópulo, nas Caldas da Rainha, e outro em 1511, infelizmente perdido, certamente também de carácter religioso, cujo único indício é a prova documental do respectivo pagamento, orçado em 5070 reais.

João Luís Inglês Fontes
Historiador

Membro do Instituto de Estudos Medievais
(Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa)
e do Centro de Estudos de História Religiosa (Universidade Católica Portuguesa)
*De 2013 para a Revista Família Cristã enviado ao DNPJ

[Fotografias: Igreja Açores;  Ordem de MaltaDiocese do PortoSNPC]

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