Pedro Vaz Patto
Presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz
Da mensagem do Papa Francisco para o Dia Mundial da Paz de 2106, Vence a Indiferença e Conquista a Paz, haverá muito a destacar, mas parece-me fundamental o seguinte.
Um primeiro aspeto a salientar é a identificação de três formas de indiferença: a indiferença para com Deus, a indiferença para com o próximo e a indiferença para com a criação. E é – diz o Papa – na indiferença para com Deus que está a raiz da indiferença para com o próximo e para com a criação. A minha primeira reação ao ler esta afirmação foi a de pensar em muitas pessoas que se afirmam não crentes em Deus e que de modo algum são indiferentes para com o próximo. Veio-me à mente esta resposta: é assim certamente porque essas pessoas não são tão indiferentes para com Deus como nós possamos pensar, ou como elas próprias poderão pensar…
Mas porque é que a indiferença para com Deus está na raiz da indiferença para com o próximo e para com a criação? Afirma o Papa: «O homem pensa que é o autor de si mesmo, da sua vida e da sociedade; sente-se auto-suficiente e visa não só ocupar o lugar d´Ele, mas prescindir completamente d´Ele; consequentemente, pensa que não deve nada a ninguém, exceto a si mesmo, e pretende ter apenas direitos» (n. 3); «O esquecimento e a negação de Deus, que induzem o homem a não reconhecer qualquer norma acima de si próprio e a tomar como norma apenas a si mesmo, produziram crueldade e violência sem medida» (n. 4). É este arrogar-se o papel de legislador de si próprio e de autor dos critérios de distinção entre o bem e o mal; esta convicção de não ter que prestar contas a ninguém superior a si próprio; que leva à indiferença para com o próximo e à indiferença para com a criação.
Mas a mensagem não se fica pelo diagnóstico, que é um diagnóstico da “globalização da indiferença” (a indiferença que superou o âmbito individual e assumiu uma dimensão global). É, sobretudo, um apelo à conversão do coração que nos faz passar da indiferença à misericórdia e à solidariedade.
O modelo é o do próprio Deus, que não é indiferente («observa, ouve, conhece, desce, liberta (…); está atento e age (…); toca as pessoas, fala com elas, age em seu favor e faz o bem a quem precisa (…); deixa-Se comover e chora (…); age para acabar com o sofrimento, a tristeza, a miséria e a morte(…)» (n. 5). «A misericórdia é o coração de Deus. Por isso deve ser também o coração de todos aqueles que se reconhecem membros da única grande família dos seus filhos; um coração que bate forte onde quer que esteja em jogo a dignidade humana, reflexo do rosto de Deus nas suas criaturas, Jesus adverte-nos: o amor aos outros – estrangeiros, doentes, encarcerados, pessoas sem abrigo, até inimigos –é a medida de Deus para julgar as nossas ações. Disso depende o nosso destino eterno» (n.5).
Essa conversão há de traduzir-se em compromissos concretos. E a mensagem contém um apelo a esses compromissos concretos. A cada um de nós, pessoas sem responsabilidades políticas, é dirigido o apelo seguinte: «cada um é chamado a reconhecer como se manifesta a indiferença na sua vida e a adotar um compromisso concreto que contribua para melhorar a realidade onde vive, a começar pela própria família, a vizinhança ou o ambiente de trabalho» (n. 8). Quantas vezes deixamos de fazer o que está ao nosso alcance para melhorar a realidade que nos está próxima, porque só pensamos na realidade longínqua, cuja mudança ultrapassa as nossas possibilidades?
Aos Estados, é dirigido o apelo a «cumprir gestos concretos, atos corajosos a bem das pessoas mais frágeis da sociedade, como os reclusos, os migrantes, os desempregados e os doentes» (n. 8). Esta prioridade revela o amor preferencial do Papa Francisco pelos últimos, pelos “descartados” ou mais desvalorizados segundo os critérios mundanos, o amor preferencial que o levou a abrir as portas do Jubileu num dos países mais pobres do mundo.
Entre nós, é oportuno este apelo.
Seja porque continuam a ser precárias as condições de vida dos reclusos e muito há ainda a fazer no sentido do melhoramento dessas condições e da aplicação de penas alternativas à pena de prisão (apelo formulada na mensagem). Essas penas alternativas com frequência são encaradas mais como uma benesse do que como verdadeiras penas, que cumpram de modo mais eficaz do que a prisão aquilo que a mensagem designa como «finalidade reabilitativa da sanção penal» (n. 8).
Seja porque se mantêm elevado o número de desempregados. E porque, como afirma a mensagem, «a falta de trabalho afeta, fortemente a dignidade e a esperança, e só parcialmente é que pode ser compensada pelos subsídios» (n. 8).
Seja porque nos preparamos para acolher refugiados. E porque para estes vale o que diz a mensagem, a propósito das migrações em geral, sobre o «valor da hospitalidade no respeito pelos recíprocos deveres e responsabilidades» (n. 8).
Seja porque casos recentes têm despertado a opinião pública para a necessidade de, como diz a mensagem, «melhorar as condições de vida dos doentes, garantindo a todos o acesso aos cuidados sanitários e aos medicamentos indispensáveis à vida» (n. 8).
Mas não podemos limitar o horizonte ao nosso país. A mensagem apela a estender «o olhar para além das próprias fronteiras», de modo a que a todos os povos seja garantida «uma efetiva participação e inclusão na vida da comunidade internacional, para que se realiza a fraternidade também dentro da família das nações». (n. 8).
Pedro Vaz Patto
Presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz
Fotografia Agência Ecclesia