O modo como os indivíduos se relacionam com o sagrado, com o transcendente ou com o fundamento do real, com as formas mais ou menos estruturadas de religião, o modo como vivem e expressam a abertura à transcendência, como constroem o seu sistema de sentido, na busca por encontrar um significado global para a vida e a morte, é também afetado pelas alterações do mundo, dos seus modos de organização, pelas práticas sociais, valores e condicionalismos dominantes, pelos equilíbrios tensos ou pelas ruturas que atravessam as sociedades.
Os jovens que integram as culturas juvenis das sociedades contemporâneas são especialmente afetados por estas alterações em virtude dos processos de socialização a que estão intensamente submetidos, durante os anos da sua formação profissional ou académica, e estão particularmente abertos a este fluxo cultural do religioso.
Características da cultura e modos de ser
As análises sociológicas sobre o modo de organização das sociedades europeias ocidentais mostram que, no período que vai dos finais do séc. XX aos inícios do XXI onde nos encontramos, existe um conjunto dinâmico de atitudes ou características culturais de fundo que configura e influencia as atitudes individuais e as dinâmicas sociais no que respeita ao modo de crer. Apresento-as brevemente pois a partir delas se compreende melhor a importância e complexidade que a noção de “espiritualidade” adquire na cultura atual como expressão da vivência do religioso.
De entre essas atitudes configuradoras sobressai a centralidade da autonomia do indivíduo nos seus processos de escolha e busca de sentido. A modernidade trouxe consigo a viragem para o sujeito, para os seus processos de consciência, de inteleção, emoção e discernimento, para a sua autonomia de pensamento e de escolha. Aquilo em que se crê, ainda que recebido de outros, tem agora de passar pelo crivo da experiência pessoal, pela instância do discernimento feito pelo sujeito, a partir da ponderação de vários fatores antes de ser acreditado, antes de ser julgado como algo credível, aceitável, praticável, útil e merecedor de compromisso pessoal. A categoria de experiência pessoal, da utilidade ou transformação interior ou subjetiva, sentida ou reconhecida pelo sujeito em determinada circunstância, é agora o elemento ou critério fundamental como antes era o testemunho recebido da autoridade de outrem.
Relacionada com a centralidade do sujeito e os seus processos de escolha está também a pluralidade (de sistemas, ofertas, opiniões, crenças, religiões, etc.) que produz uma multiplicidade de opções possíveis, nem sempre de decisão fácil no campo do crer. Por outro lado, as nossas sociedades ocidentais são marcadas por um intenso fluxo e refluxo de informação, comunicação, decisões e alterações, que cria uma instabilidade e imprevisibilidade dos equilíbrios económicos-sociais e políticos (onde sobressai a crise de emprego, agora a crise dos mercados e dos capitais, crise dos alimentos, as crises do petróleo ou, num futuro próximo, a crise da água, etc.), pela intensidade e omnipresença dos media e pela globalização que impõe de forma universal sistemas políticos, económicos e também religiosos.
Um outro aspeto fundamental sobressai na sociedade atual: a dinâmica da secularização que não corresponde a uma perda do interesse por Deus, pela transcendência, pelo sagrado, mas a uma deslocação do quadro de referência onde se realiza a busca e vivência desse sagrado. Deslocação desde uma vivência, busca e prática da relação com Deus, com o sagrado, anteriormente feita em referência a formas instituídas, estruturadas, históricas e reguladas da religião para uma “sacralidade contingente”, onde a relação com o transcendente é buscada e encontrada no quotidiano, no secular e no “profano”, sem que isso signifique necessariamente uma rejeição ostensiva das formas institucionais e estruturadas das religiões tradicionais. (…)
Uma tal mutação do sentido do sagrado tem consequências também no processo de crer enquanto apreensão do sentido que está vinculado à centralidade do sujeito, ao seu percurso biográfico, ao modo como confere significado às suas experiências e faz delas uma fonte de valores. Desde a autonomia pessoal e a centralidade dos seus processos subjetivos emerge um modo de crer que se vai autonomizando, em muitos casos, do apoio e dos critérios transmitidos pelas tradições religiosas instituídas, das suas normas éticas e valores, a partir de uma construção, hierarquização e seleção pessoais. As propostas de vivência religiosa oferecidas por várias tradições e comunidades estruturadas e históricas são agora alvo de uma seleção criteriosa e personalizada.
O modo de crer surge como fruto de uma atividade combinatória ou recombinatória, onde se tem liberdade para construir um quadro de experiência crente, marcado por um estilo sincrético (exercício de patchwork, bricolage ou justaposição de várias formas de religiosidade), relativizan-te (porque desde uma crítica racional se contesta a validade universal e única de determinadas doutrinas, normas ou ritos), pragmático (porque o horizonte de interesse e as inquietações crentes não se orientam para uma meta-história mas para uma consciência e experiência de amparo, apoio e realização humana neste momento da história, com os seus condicionalismos e dramas) e experiencial onde ressalta a importância do elemento emotivo-afetivo, da comunicação interpessoal, da expressão corporal, da experiência estética e da comunicação simbólica.
Todas estas características do modo contemporâneo de crer estão animadas por uma fluidez interna, pelo movimento que brota das escolhas do sujeito e das dinâmicas vividas e discernidas como as mais relevantes, significativas e adequadas para si, num dado momento. Da centralidade da subjetividade individual desprende-se uma nova ordem moral que «se autogera, agora desde uma diversidade ética sumamente heterodoxa da qual, paradoxalmente, pese a sua aparente desordem, é suscetível de emergir uma nova ordem social moral construída agora sobre o quotidiano. Uma nova ordem moral contingente construída não já a partir de axiológicos valores aprendidos, transmitidos […], herdados, mas valores autoproduzidos, ‘impulsos éticos’ (Araguren), ‘valores morais’ (Max Scheler) emergem agora […] a partir da prática diferenciada para cada circunstância de uma moralidade de acordo com uma nova ordem interna de consciência.»
A mutação no sentido do sagrado que se deteta na sociedade contemporânea traz consigo um ressurgimento da abertura à religiosidade, entendida no sentido apresentado por G. Simmel como uma forma pura de religiosidade que não tem de ser necessariamente objetivada numa forma religiosa, como uma qualidade funcional da pessoa. Ela não corresponde, portanto, a uma perda de sensibilidade ou de abertura ao transcendente, ao religioso ou a uma relação com Deus. Não é Deus que desaparece da sociedade nem é o mistério profundo do homem e do mundo que se ausenta da experiência humana. Antes se altera e amplia o quadro de referência em que éfeita a busca de sentido, a crença, a descoberta de Deus, a prática e experiência espiritual e/ou religiosa.
Juntamente com esta abertura a uma noção ampla de espiritualidade e busca de Deus, percebido como acessível também nas realidades mundanas e conhecimentos humanos, possível de ser encontrado e experimentado também na corporalidade e emotividade humana e não só ao nível da razão, de conteúdos do crer afirmados, do rito normativizado, tem lugar um ressurgimento da importância da “espiritualidade” ou “espiritualidades”, noção que ganha neste contexto cultural uma polissemia e plasticidade que o tornam ambíguo e difícil de definir. Agora a “espiritualidade” está em “toda a parte” porque o sujeito tem consciência que a sua sede está em si e na sua busca pelo fundamento e sentido da sua vida, individual e comunitária, no momento presente e no horizonte mais largo que inclui o tempo passado e o devir. (continua)
Teresa Messias
Professora na Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa
In Communio 2012/1
19.09.12