Por António Marujo, jornalista do religionline.blogspot.pt

De quase nada, o irmão Roger criou uma aventura que prossegue ainda e que, ao longo de 75 anos – que se assinalam no próximo dia 20 de Agosto – tem tocado gerações e gerações de pessoas.

O próprio irmão Roger, de Taizé, escrevia: “Com quase nada, antes de tudo pelo dom da nossa vida, Cristo, o Ressuscitado, espera que em nós se tornem perceptíveis o fogo e o Espírito.”

Esse quase nada esteve presente logo no início de Taizé: apenas saídos da II Guerra Mundial, as necessidades eram imensas. E os necessitados ainda mais. O próprio irmão Roger fazia sopa, com poucas coisas, para os prisioneiros de guerra a quem os irmãos da comunidade ajudaram. “Ele tinha o sentido da vida rural, da festa, das crianças…  isso permite a vida criativa de uma comunidade onde cada um dá a sua pedra para o edifício criativo e tudo isso forma um todo”, dizia-me, no Verão de 2014, numa entrevista, o irmão Daniel, um dos primeiros três que se juntou a Roger Schutz para criar a comunidade.

Esse quase nada desencadeia, no entanto, uma transfiguração enorme. Escrevia ainda o irmão Roger: “Das provações, Cristo pode fazer nascer uma audácia viva, que nos permite ser criadores com Deus e assumir os riscos da fé. Cristo vem atravessar fragilidades, fracassos e noites interiores. Ele transforma as provações e, ao longo da nossa vida, vai-as transfigurando.”

Roger Schutz, nascido na Suíça a 12 de Maio de 1915 – fez há pouco 100 anos – foi vivendo, ele próprio, essa transfiguração: a fragilidade da juventude, quando esteve meses retido em casa por causa de uma tuberculose, transfigurou-se em fortaleza do espírito e da vontade; nascido no interior de uma família protestante (o pai era pastor), a atitude da sua avó, que era capaz de rezar numa igreja católica, levou-a a construir o sonho de uma comunidade que vivesse a parábola da confiança.

Importa entender que esse tempo era outro tempo: católicos e protestantes mudavam de passeio na rua, para não terem de se saudar; falar com alguém de outra igreja poderia levar à marginalização, no interior da sua própria comunidade.

O risco corrido pela avó de Roger Schutz fez com que o neto, anos depois, transfigurasse esse olhar: do ódio que atravessou a Europa nas primeiras décadas do século XX (e que, lamentavelmente, volta a ressurgir hoje, naquilo que a União Europeia está a fazer à Grécia), ele passou a um olhar de reconciliação urgente.

Roger Schutz fez tudo isso com quase nada. “Com quase nada” é, precisamente, o subtítulo da biografia escrita por Sabine Laplane e publicada este ano*. Por causa de quase nada, aliás, começou a aventura de Roger em Taizé. Quando estava à procura de um sítio, ao visitar a aldeia, foi um casal de idosos que lhe pediu: “Fique connosco, estamos aqui sozinhos.”

Durante as seis décadas e meia que permaneceu em Taizé, até à sua morte aos 90 anos, em 2005, o irmão Roger ensinou muita gente a entender o cristianismo e a relação com Deus de uma outra maneira. E fê-lo com quase nada: rezando e cantando de forma simples, escrevendo, falando com a palavra e com o seu olhar.

Na última entrevista que lhe fiz, em Lisboa, na véspera do encontro europeu de jovens, de 2004, recordo a forma como se exprimia: algumas das frases começavam com palavras, continuavam com a mão suspensa e um olhar luminoso, e só depois terminavam de novo com palavras.

O irmão Charles-Eugène, que se juntou à comunidade em 1958, recordava-me, numa outra entrevista, há um ano, que “foi o olhar do irmão Roger” que também o atraiu, no primeiro encontro que teve. “Tive o sentimento de ser acolhido, de ser adivinhado sem muitas palavras para dizer. O irmão Roger falava com os olhos e compreendia com o olhar.”

Quando era já mais idoso e foi ficando com alguns problemas de surdez, recorda ainda o irmão Charles-Eugène, o prior de Taizé ficava na igreja da Reconciliação, à noite, a acolher os jovens que o procuravam. A fila era grande, mesmo se era apenas para receber uma bênção ou uma palavra. Apesar disso, “era um verdadeiro contacto, mesmo se não havia muitas palavras”.

No preâmbulo da biografia, Sabine Laplane recorda também: “Ano após ano, familiarizei-me com o modo de falar do irmão Roger, cada vez menos articulado, cada vez mais alusivo, em alguns momentos luminoso e por vezes intrigante, ou seja, um para-além das palavras…”

Com quase nada, foi possível o irmão Roger propor o essencial do cristianismo aos milhares e milhares que se foram sucedendo em Taizé e conhecendo a comunidade. Esse essencial que se descobre através de algumas palavras-chave na espiritualidade do irmão Roger e da sua utilização em vários dos seus livros: o amor (Deus só pode amar; O seu amor é um fogo; O espanto de um amor); a unidade e a reconciliação (A unidade, esperança de vida; Em tudo, a paz do coração; Violência dos pacíficos); a escuta de Deus (Viver o hoje de Deus; Viver o inesperado; Que floresçam os teus desertos); a esperança (A paixão de uma espera; Pressentes uma felicidade?). E, enfim, o fazer tudo isto com quase nada (Dinâmica do provisório; Que a tua festa não tenha fim).

A fé em Jesus diz-se, afinal, com quase nada.

* Sabine Laplane, Frère Roger, de Taizé – Avec Presque Rien (Les Éditions du Cerf, Paris 2015)

(Nota: por opção do autor, o texto segue a anterior norma ortográfica)

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