Helena Topa Valentim
Movimento GRAAL
Professora de Linguística
(Universidade Nova de Lisboa)

            Muitas vezes dizemos que Maria é uma figura central na história da revelação de Deus.

            É frequente esta afirmação ser acompanhada de uma representação muito beatífica de Maria, que se pode talvez explicar como projeção de conceções ancestrais de uma divindade feminina, presente em tantas tradições espirituais e, por isso, profundamente enraizadas.

            Claro que a história da revelação de Deus se dá na história da humanidade e, como tal, integra tudo, como caminho, como grande travessia que nos pretende reconduzir à fonte. Mas, como é que Maria ‘entra em cena’ nesta história? Com que relevância? Com que atualidade para cada um e cada uma de nós? Que centralidade é, afinal, esta que reconhecemos a Maria?

Não saberemos formular todas as perguntas possíveis sobre Maria, mas basta ensaiar algumas para percebermos que a resposta a qualquer uma delas só nos pode conduzir a Jesus.

Maria2016 (3)             O sim de Maria, o seu “fiat”, apresenta-se-nos como um momento misteriosamente obscuro e luminoso. As escrituras assim no-lo mostram. Maria é convocada pela Palavra de Deus feita saudação, uma saudação que ecoa no tempo: reúne o momento em que Deus cria, pondo ordem no caos e reconhecendo que tudo é bom, com a história humana cheia de contradições, feita de encontros e desencontros com esse mesmo Deus. E Maria, nesta encruzilhada – como o é sempre a vida – acolhe a Palavra e regenera-a. Os evangelistas descrevem-na dando glória a Deus, mesmo se o seu assentimento não a coíbe de questionar e se corre de imediato para junto de Isabel (podemos supor que a certificar-se de que era mesmo verdade o que ouvira do anjo). Esta regeneração da Palavra – percebemo-lo – é porque, cheia do Espírito de Deus, quando reza, Maria celebra, desde logo, o próprio Jesus, o Verbo encarnado, a Palavra de Deus feita carne.

 

 

            Depois, há um longo silêncio, o silêncio do caminho que Maria fez para a interiorização e adequação da Palavra de Deus a si e para adequação sua à Palavra de Deus. É obscuro sim, este silêncio. Mas é simultaneamente um silêncio luminoso, pois não é uma forma de passividade, mas de ação. O seu assentimento não foi algo que a esmagasse ou humilhasse. Pelo contrário, foi acolhimento de Deus na história e, desde logo, seguimento de Jesus, na liberdade e na verdade. Por isso, é central na nossa relação com Deus lembrarmo-nos de Maria como a primeira cristã. Ela mostra-nos Jesus, única via para o Pai.

            Interrogando o lugar de Maria na história, verificamos ainda que, ao testemunhar uma unidade intrínseca entre o crer e o viver, Maria participa da dimensão sapiencial da tradição bíblica que a antecedia. Maria sentiu que a experiência do mundo era a experiência de Deus e sentiu o contrário, que a experiência de Deus era a experiência do mundo. Sentiu-o na carne, desde a anunciação até ao calvário, aos pés da cruz, confrontada com o sofrimento maior.

            A vida e morte de Jesus revelam-nos que, junto ao anjo, Maria não assinou uma apólice de seguro, nem recebeu um conjunto de certezas tranquilizadoras. Mostra-nos que o saber próprio da fé de Maria é o saber da confiança; é a fé que confia contra toda a evidência, a fé que habita o sofrimento, mas que, pela ressurreição de Jesus, se torna o lugar da esperança. E com que alegria terá Maria acolhido a notícia da ressurreição de Jesus! Podemos imaginá-la a revisitar o Magnificat com um sentido de plenitude tal, que nada na sua vida se perdeu, ascensa que foi aos céus em corpo e alma.

Maria2016 (2)            Pode ser que, na infância e juventude, Maria tenha recebido passivamente a fé, através do ambiente familiar e comunitário, mas houve um momento em que pôde experimentar, na carne e na vida, a verdade de tudo o que recebeu, fazendo-o seu e de toda a humanidade. Esta é a fé humaníssima de Maria, aquela que a torna próxima de cada um e de cada uma de nós. Maria ensina-nos uma fé que tem a ver com a vida e que permite a vida. Pela sua adesão concreta, vivida como confiança, como entrega e como fidelidade, inspirou toda a Igreja que, pelas palavras de Paulo, proclama que “a fé é garantia das coisas que se esperam e certeza daquelas que não se veem” (Heb 11, 1). Que Maria nos ensine a proclamá-lo com as nossas vidas!

Helena Topa Valentim
Movimento GRAAL
Professora de Linguística
(Universidade Nova de Lisboa)

(Fotos: entrada, Fraternidade Monástica de Belém, estátuas em madeira; 1 artigo: Harry Callahan, Silhouette with Feather)

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