(Padre e médico) J. M. Pereira de Almeida
Coordenador Nacional da Pastoral da Saúde;
Há coisas que não se dizem.
Há assuntos que não se discutem.
Ou raramente…
E, todavia, «o debate reaparece […] e ganha uma nova dimensão com o problema particular da eutanásia. Estas questões são demasiado importantes para serem escamoteadas ou abafadas» (Georges MINOIS, História do suicídio, 1995).
Ilustres filósofos defendem a legalização do suicídio medicamente assistido; são “a favor” (Cf. Gerald DWORKIN, R. G. FREY, Sissela BOK, Eutanásia e Suicídio Medicamente Assistido, 1998); Sissela Bok, uma das mais conhecidas especialistas de ética dos EUA argumenta “contra”.
R. Dworkin, um dos mais importantes filósofos do Direito (ensina em Oxford e Nova Iorque), afirma: «Todos os dias há pessoas, por todo o lado, que, na posse das suas faculdades mentais, pedem que lhes seja dada licença para morrer. Às vezes pedem a ajuda de outros. Alguns estão já a morrer. Muitos sofrem muitíssimo, como Lillian Boyes, uma inglesa de 60 anos, com uma forma terrível de artrite reumatoide. Tão dolorosa que, mesmo sob os mais potentes analgésicos, gritava quando o filho lhe tocava ao de leve com um dedo na mão. Alguns querem morrer porque não querem viver da única maneira que lhes resta. Alguns querem morrer porque não querem viver da única maneira que lhes resta, como Janet Adkins, de 54 anos, do Oregon, que sabia encontrar-se nas primeiras fases da Doença de Alzheimer; queria morrer quando ainda se sentia capaz de o fazer… Às vezes são os familiares a pedi-lo porque o doente se encontra em estado vegetativo persistente, como no caso de Nancy Cruzan cujo córtex cerebral ficou destruído por falta de oxigénio, a seguir a um acidente. A ventilação artificial veio a ser suspensa depois de sete anos de vida vegetativa, na sequência de numerosos pedidos dos pais ao Supremo Tribunal. Os médicos dispõem de uma tecnologia que pode manter em vida (às vezes por semanas, outras vezes por anos) doentes já próximos da morte. Com debilidades terríveis. Entubados. Desfigurados por intervenções cirúrgicas experimentais. No meio de um sofrimento atroz ou medicados com sedativos até à inconsciência. Ligados a uma dúzia de máquinas relacionadas com as suas funções vitais. Explorados por uma dúzia de médicos para os quais “eles” não são reconhecidos como “pessoas que estão doentes”, mas antes como um “campo de batalha”; – e conclui – todos nós estamos aterrorizados com esta perspectiva» (Ronald DWORKIN, O domínio da vida. Uma argumentação sobre o aborto, a eutanásia e a liberdade individual, 1993).
Pode ser que não seja esta a nossa sensibilidade…
Mas é importante darmo-nos conta de que é este o tipo de mentalidade em que emerge o debate sobre a eutanásia e o suicídio assistido (Joane MARTEL, O suicídio assistido, 2002). De facto, com os progressos tecnológicos que conhecemos (quase) nada permaneceu inalterado.
Todavia, será que estes avanços da tecnologia correspondem a reais progressos na medicina?
O que é feito da clínica?
O que acontece à pessoa do doente?
Qual o alcance e quais os limites da medicina que hoje conhecemos?
“O que fiz eu?!…”
“Ajude-me!…”
Como me situo diante de uma pessoa com uma história destas, uma história pesada, uma história de sofrimento e de dor?
História, mais ou menos longa, sempre demasiado comprida para ela e para aqueles que com ela vivem, para os seus amigos.
Mas, muitas vezes, surge como história breve… uma chama que se apaga tão cedo, de uma forma tão difícil de aceitar, tão dura, tão amarga.
Para aquela pessoa que está tão doente, uma certa esperança deixa de ter a possibilidade de ser vivida; desde agora a morte não está só num horizonte mais ou menos longínquo: é morte anunciada; e morte para breve.
Mas não necessariamente assim para tão breve.
Como me situo diante de alguém numa situação de debilidade destas, de dependência, de fragilidade?
Durante este tempo – maior ou menor, mas sempre grande em termos de significado –, que fazer?
Distancio-me? Deixo-a(o)?
Esta atitude pode ser eventualmente compreensível, mas será cada vez menos justificável.
Entre os clínicos, muitas vozes se levantam contra a maneira de proceder de uma medicina que se entende em chave curativa (em que o médico não terá, de facto, nada mais a fazer…).
E esses médicos, integrados nas suas equipas, procuram realizar seriamente os gestos concretos que tal decisão comporta.
Uma palavra para saudar os esforços daqueles que procuram que os Cuidados Paliativos sejam uma realidade em Portugal.
O termo “eutanásia” é polissémico…
Para o pensamento estóico corresponde a uma morte que seja a coroação de uma vida realizada (C. Suetónio, Divus Augustus), uma morte cheia de honra e livre de todos os constrangimentos (Tácito, Annales XV). Compete ao médico aliviar as dores para tornar suportável o morrer.
Quanto à Idade moderna, a palavra encontra-se na obra de Francis Bacon, De dignitate et augmentis scientiarum (1605): é subjacente a ideia da humanização do morrer atormentado.
Para F. Nietzsche corresponde ao direito a determinar o tempo e o modo da própria morte, numa situação de vida já inútil, porque sufocada por sofrimentos extremos.
Na senda do social-darwinismo do séc. XIX, o jurista K. Binding e o psiquiatra A. Hoche, no texto Die Freigabe der Vernichtung lebensunwerten Lebens (1920), apresentavam como direito a pretensão da sociedade de se libertar do peso económico de uma “vida indigna de ser vivida” como a de pessoas doentes ou de grupos que se podiam assemelhar (?!) a essa situação.
Há quem apresente a Eutanásia distinguindo e classificando. O quadro é o seguinte:
Activa Passiva
Voluntária
Involuntária
Directa Indirecta
Vou procurar esclarecê-lo. De forma muito simples.
Em primeiro lugar, este binómio: directa/indirecta. Quando dizemos “eutanásia indirecta”, falamos de efeitos secundários de fármacos.
Depois o binómio activa/passiva. Quando dizemos “eutanásia passiva”, falamos de suspensão de medidas inúteis.
No fundo, eutanásia em sentido próprio (como actualmente se usa; e não aquela ‘boa morte’ que todos havemos de desejar e que corresponde ao seu étimo grego) é, de facto, activa e directa. Trata-se de uma acção que tem por resultado a morte de alguém; a pessoa está doente, sofre e solicita a que a morte lhe seja dada. Mais: a pessoa que causa a morte é distinta da do doente que morre.
A pessoa que está doente sofre. Como se verifica a existência de um sofrimento insuportável ? (Vale a pena recordar a distinção entre dor e sofrimento.)
É a pessoa doente que solicita a eutanásia. O pedido tem de ser voluntário, quer dizer, livre, sem pressões alheias determinantes para a decisão. O pedido tem de ser bem pensado, firme e duradouro.
Com pedido ou sem pedido, nesta circunstância há-de proceder-se do seguinte modo (que creio ser o modo sensato): Suspendem-se os meios de tratamento que se revelam desproporcionados face à situação objectiva do doente. Mantêm-se aqueles meios que, destinados a tratar sintomaticamente o desconforto do doente e a aliviar-lhe o sofrimento, correspondem à justa medida perante as circunstâncias concretas (proporcionados).
É nestas situações que se concretiza uma administração sensata, razoável, da própria vida: o contrário do “encarniçamento contra a morte”, da obstinação na terapêutica, de um furor terapêutico.
Mas pode acontecer que se invoque o ‘direito’ a decidir sobre a própria morte.
Pode acontecer que alguém queira indicar como e quando quer morrer.
Encontramo-nos diante de um outro que formula um pedido, que exprime um desejo, que explicita uma vontade.
Tenho diante de mim alguém que não pode deixar de ser tomado a sério, com os seus valores, que não são necessariamente os meus, com a sua visão sobre o mundo e sobre a vida que tem de ser respeitada e devidamente considerada.
De onde vem este pedido?
Creio que existe uma certa visão de dignidade que corresponde a um projecto antropológico de auto-suficiência, ao qual não é estranho uma tendencial omnipotência, ao menos enquanto ânsia de poder.
À nossa volta o que é que tem peso, o que é que vale? Quem ganha? Quem é o melhor? Desde a escola – as excepções são excepções – que fomos ‘treinados’ segundo uma lógica de poder: a vitória pertence ao mais forte, ao melhor.
Ora, caminhar para o lugar onde já se não é nem forte, nem belo, onde nos vemos frágeis, dependentes de todos… não é muito fácil de compaginar com a nossa ideia de dignidade.
É de sublinhar o carácter pouco argumentativo do recurso à dignidade humana.
Corresponde, sobretudo, a um apelo, a uma exortação.
Recordamos E. Kant: «Quando uma coisa tem um preço, pode pôr-se, em vez dela, qualquer outra coisa como equivalente; mas, quando uma coisa está acima de todo o preço e, portanto, não permite equivalente, então ela tem dignidade».
Poderíamos dizer que as coisas têm preço, as pessoas têm dignidade.
Será que não se encontram outras dimensões com peso, com valor, além das do domínio, do poder, do esplendor?
Suponho que faz parte da nossa comum experiência o darmo-nos conta da importância da dimensão da fragilidade.
Estar presente a, estar com quem morre, não para lhe dar, não para fazer, não para lhe ensinar coisas, mas para, como um aluno, aprender dele, com ele, a sua vida, a sua história, o seu horizonte de sentido.
É esse horizonte que me importa saber acolher, ouvir, não para o convencer a adoptar o meu, mas para o recolher com o cuidado com que lidamos com o que é precioso, delicado e frágil.
Chegamos, assim, ao que é central: o nosso pessoal encontro com quem morre, o encontrar a pessoa que está a morrer.
Com o outro que nos está confiado, com o outro que nos fala.
Como o escutamos, como o acolhemos?
No centro da nossa atenção está a nossa relação com uma pessoa gravemente doente. Há que dar toda a atenção ao estabelecimento de uma comunicação tão boa quanto possível.
Nas relações humanas, muitas vezes, o que é dito não é o que é vivido.
Uma atitude agressiva pode significar timidez, uma afirmação de auto-suficiência pode ser um pedido de ajuda.
“Não consigo!”
Na resposta que damos dizemos da nossa vida. A resposta que damos poderá revelar a dimensão da confiança.
“Não é verdade. Podes suportar!”.
E dizer isto não só com palavras adequadas mas com uma adequada presença. Acompanhar. Estar ali.
Morrer de maneira humana quer dizer com os outros que partilham aquela situação.
E, quando a imagem do ‘não digno’ de todo este processo está ligada à ideia “que figura faço?”, há que dizer, sobretudo com o gesto, seguramente com a nossa atitude: “Não tenhas vergonha! Estamos contigo. Gostamos de ti.”
No dia 4 de Janeiro de 1985 o Dr. Jack Kevorkian escreveu uma carta a Cicely Saunders. Termino com palavras da carta de resposta da fundadora do Movimento dos Hospices ingleses:
«Não voltei a falar com o Rabino Cohen embora ele talvez tenha vindo ao Hospice. Acho que se ele me conhecesse melhor não teria sugerido que eu era a pessoa indicada para o ajudar no seu projecto. […] A minha posição pessoal é que uns bons cuidados terminais, que não têm necessariamente de ser prestados num hospice […], são uma resposta infinitamente melhor que o abreviar da vida. Sabemos também como a família pode empregar esse tempo na descoberta das suas próprias forças, enquanto o doente procura sentido no tempo que lhe resta. Claro que nem todos o fazem e há histórias tristes, mas eu, pelo menos, penso que uma lei que dê a possibilidade de uma morte antecipada, voluntária ou involuntariamente, prejudicaria em muito o nosso compromisso de cuidar dos membros mais fracos da nossa sociedade e de desenvolver os meios de controlar as aflições físicas ou mentais para que o doente possa permanecer igual a si mesmo, até ao fim».
(Padre e médico) J. M. Pereira de Almeida
Coordenador Nacional da Pastoral da Saúde;
Diretor do Secretariado Nacional de Pastoral Social