Após alguns dias do regresso do encontro europeu de Taizé em Estrasburgo, usufruo dos frutos daqueles dias vividos na alegria da partilha, da oração e do silêncio. É verdade que cada um vive estes encontros de forma distinta e pessoal.
Não há duas experiências iguais. Mas, também é verdade que ninguém fica indiferente ao “espírito de Taizé”. Não raras vezes, sinto-me como um dos discípulos do caminho de Emaús e interpelo-me: “Não nos ardia o coração, quando Ele nos falava pelo caminho e nos explicava as Escrituras?” (Lc 24,32). Quem aceita entrar nesta “peregrinação de confiança sobre a terra” lançada pelo irmão Roger em 1978, é interpelado de forma subtil a viver na simplicidade do encontro a partilha e o diálogo. As diferentes línguas poderiam ser ocasião de desentendimento, mas cada transeunte deste caminho com Cristo é chamado a pronunciar a Paz no concreto da vida e a ser agente de um novo Pentecostes.
Estrasburgo, terra de diálogo
Várias poderiam ser as razões para visitar a cidade de Estrasburgo. A beleza da paisagem, a história, a cultura, a gastronomia, a arquitetura, as gentes… A poucos dias de terminar o ano, fomos muitos os jovens que encontrámos naquela cidade o ponto do nosso encontro com a comunidade de Taizé para rezarmos juntos. Cheguei no dia 27 à noite, mas o primeiro contacto com a cidade foi na manhã do dia seguinte. A cada jovem que via, adivinhava um possível participante no encontro… e não éramos poucos. Não nos distinguíamos pelos distintivos ou marcas exteriores, mas por um certo espírito próprio a estes encontros: um misto de cansaço da viagem, de alegria da chegada e de abertura para a partilha. Era o primeiro dia em Estrasburgo e para muitos a primeira vez num encontro como este. Já tinha tido a oportunidade de vivenciar o espírito de Taizé em Lisboa, mas desta vez fi-lo em contexto de noviciado espiritano.
A localização geográfica em muito contribuiu para o desenvolvimento deste encontro europeu que aconteceu simultaneamente em dois países. A região da Alsácia na França e da Ortenau na Alemanha são o testemunho da reconciliação e do perdão no coração da Europa. São constatáveis as marcas da ocupação e da resistência, mas o diálogo de povos, culturas e religiões alcança uma visibilidade ainda mais acentuada e promotora de esperança. Com estes povos habituados ao diálogo mesmo em condições não muito favoráveis, aprendemos que a reconciliação das Igrejas cristãs é uma urgência. Nas palavras do irmão Aloïs, proferidas na oração da noite do dia 30, tomámos consciência de que “os cristãos reconciliados fazem ouvir a voz do Evangelho com muito maior claridade, num mundo que precisa de confiança para preparar um futuro de justiça e de paz. (…) Não se trata de nos juntarmos para sermos mais fortes, mas para sermos fiéis a Cristo, doce e humilde de coração. Ele ensina-nos que a verdade se faz ouvir através da humildade”.
Apesar do frio ambiente, o calor humano aqueceu os nossos corações. Fiquei alojado na casa espiritana em Estrasburgo, mas os participantes deste encontro ficam, normalmente, em famílias de acolhimento. Foi com alegria que pude constatar o sinal de esperança manifesto no empenho e na participação das famílias dos dois lados da fronteira. O essencial do alojamento nas famílias não é tornar a nossa estadia mais barata. Abrir a porta a alguém que não se conhece e partilhar o mesmo teto é desafiador, mais ainda quando somos chamados a abrir o coração e a partilhar tempos de oração e de convívio. No acolhimento das famílias, aconteceram verdadeiros encontros ecuménicos e culturais.
Oração, motor de mudança
Como é normal nos encontros de Taizé, a oração pautou os nossos dias e ajudou-nos a refletir sobre o tema: “Procurar a comunidade visível de todos os que amam a Cristo”. O desafio era bem claro: “viemos a Estrasburgo como peregrinos da paz e da confiança”, dizia-nos o irmão Aloïs na oração da noite do dia 28. A interpelação foi bem acolhida e sobretudo bem vivida. Aliás, as pessoas, com quem partilhámos transportes públicos e ruas da cidade, notaram com um certo espanto a forma tranquila e organizada com que tudo decorria. Lia-se nos jornais locais que os jovens de Taizé estavam na cidade e os habitantes reconheciam e agradeciam a sua presença. Apesar dos barulhos próprios dos ajuntamentos, foi nos grandes silêncios que tivemos a oportunidade de nos questionar e, assim, tocar a consciência daqueles que nos viam e de nós ouviam falar.
Diariamente, tínhamos três grandes momentos de oração. De manhã, estávamos nas mais de 200 paróquias protestantes e católicas das duas margens do rio Reno. À tarde e à noite, reuníamo-nos em três pavilhões no parque de exposições de Wacken, preparados para o efeito segundo a temática do rio, do jardim e da vinha, na catedral de Estrasburgo e na igreja protestante de São Paulo. Tive a oportunidade de passar por todos estes espaços de oração e de usufruir da sua beleza espiritual. Rezar juntos nesta cidade significou unir esforços para tornar visível a reconciliação. Bebemos juntos na mesma fonte, para juntos enfrentarmos os desafios do anúncio do Evangelho. Para ajudar à reflexão, a comunidade de Taizé apresentou quatro grandes propostas, a partir das quais se desenvolveram as partilhas nas paróquias e as meditações nas orações: ir ao encontro da comunidade orante; alargar a amizade para além das fronteiras que nos separam; relacionar-se e rezar regularmente com os outros; tornar mais visível a comunhão entre todos os que amam a Cristo.
As paróquias às quais estavam ligadas as famílias de acolhimento receberam-nos na simplicidade de quem quer partilhar connosco a vivacidade de ser em Cristo e aprender de nós a alegria juvenil. Deram-nos as condições favoráveis à oração, à partilha e à reflexão. Nas partilhas, testemunhei incertezas, dúvidas, preocupações próprias do sangue juvenil ávido em tornar a Europa um continente mais renovado e acolhedor a todos os níveis. Surgiram questões relativas a práticas das Igrejas cristãs, assim como relativas aos diversos modos e meios de compromisso pessoal. Foi gratificante, sentir que aquilo que nos unia e sustentava era a fé em Cristo.
Os momentos em que estávamos juntos nos cinco grandes espaços de oração eram favoráveis para carregar baterias. Fomos convidados a entrar na “fonte da amizade” e a ousar mergulhar mais profundamente na “fonte da confiança em Deus”. Na oração do dia 29 à noite, o irmão Aloïs interpelou-nos a centralizar esta busca da confiança na oração de silêncio e na contemplação de Cristo. A própria oração proposta por Taizé segue esse mesmo ritmo melodioso e contemplativo que nos faz embalar nos projetos de Deus. Foi com alegria interior que me senti a interiorizar o louvor na repetição melodiosa, mesmo quando a língua me era indecifrável, a acolher a provocação na escuta da Palavra e a receber da contemplação dos ícones a força para a ação quotidiana. Depois de cada oração, o ícone da cruz era depositado no chão e eram criadas condições para que pudéssemos continuar livremente em meditação pessoal. Cada jovem podia ajoelhar-se e tocar com a cabeça na cruz, ficando em adoração por alguns instantes. Eram momentos de verdadeiro exame de consciência sobre a cruz. Pessoalmente, por falta de coragem ou porque eram muitos os jovens, não o fiz, mas não deixei de viver interiormente este tempo forte de procura e de encontro com Cristo.
Ousar cruzar-se
Os encontros de Taizé são o lugar da ousadia. O modo de rezar, de discutir os problemas atuais, de partilhar e de comunicar revela bem a abertura simples e interior a que a comunidade ecuménica de Taizé nos convida. Foi gratificante sentir que, fundados em Cristo, podemos partir para os diversos cruzamentos que nos levam a fazer amizades, trocar ideias, perder os medos e os preconceitos do desconhecido. As diferentes línguas e nacionalidades poderiam ser símbolo de uma verdadeira Babel, mas tornaram-se aqui o sinal vivo e audaz de que a reconciliação é possível a todos os níveis.
Para estas trocas de experiências, foram propostos diversos ateliês nas tardes dos dias 29 e 30. Estes “carrefours” espalharam-nos e levaram-nos ao encontro da cultura local e dos pontos emblemáticos da cidade, para refletir sobre temas religiosos, sociais, económicos, culturais e artísticos… Viveram-se verdadeiros momentos históricos que marcaram pelo seu caráter simbólico. Destaco o encontro no hemiciclo do Parlamento Europeu, onde se discutiram as novas formas de pobreza e de solidariedade. Não participei neste ateliê para o qual era preciso inscrição prévia, mas foi com alegria que ouvi falar da ousadia dos jovens ao cantarem aí o Laudate omnes gentes, como que a convidarem todos os povos a louvarem o Senhor, revelando a política como uma forma de louvar a Deus no Homem. O meu interesse para conhecer os edifícios levou-me à Grande Sinagoga e à Grande Mesquita. As partilhas surpreenderam-me pela positiva e ajudaram-me a aprofundar a dimensão inter-religiosa das nossas relações humanas. Na sinagoga, a segunda maior, depois da de Budapeste, e perante uma grande assembleia de jovens, o Grande Rabino René Gutman proferiu um discurso onde desenvolveu, entre outros, o tema da diferença. Posso dizer que foi interpelador ouvi-lo explicar que Deus Se encontra no outro, precisamente na diferença que ele consiste para mim, mais ainda, que só alcançaremos a paz, quando soubermos abrir os nossos corações à diferença. Na Grande Mesquita, arquitetada sob o signo de “Deus é Luz”, pude aprender um pouco mais sobre a realidade muçulmana e perder certos preconceitos. Ainda tenho bem presentes os sorrisos de admiração e conforto com que fomos recebidos tanto na sinagoga como na mesquita. Senti que foi no respeito que nos acolhemos mutuamente.
Não menos audaz, foi o momento da oração da noite do dia 30 na Catedral. O irmão Aloïs, perante os representantes das Igrejas cristãs, ousou tornar-se como que a voz da consciência coletiva dos jovens desejosos de mais abertura e comunhão entre as nossas Igrejas divididas, dizendo: “não haverá um momento em que será preciso ter a coragem de nos juntarmos todos sob o mesmo tecto, sem esperar que todas as formulações teológicas estejam completamente harmonizadas?” Confesso ter sido gratificante ouvi-lo a desenvolver o tema da diferença como motivo de enriquecimento e não necessariamente de divisões. O seu convite provocador foi fortemente aplaudido: “façamos com os cristãos de outras confissões tudo o que é possível fazermos juntos. Não façamos mais nada sem ter em conta os outros”. Nele, reconheço um desafio de reconciliação e de reconstrução da Europa, que parece teimar em perder as suas raízes. Também simbólico e animador foi o momento em que, durante a mesma oração, os representantes das Igrejas cristãs se unem e falam a cinco vozes, mostrando a longa tradição ecuménica vivida na Alsácia e na Ortenau. Foi sobre o mesmo ícone da cruz que, de joelhos, colocaram a cabeça. Manifestaram-nos que é possível rezar juntos desde que na abertura e no respeito de todos e de cada um.
Enraizado para partir
As duas vezes em que participei num encontro europeu de Taizé foram, para mim, oportunidades favoráveis a enraizar a fé em Cristo e a alargar os laços da amizade. Encontrámo-nos connosco mesmos e criámos laços com outras pessoas. O ponto alto desta troca de experiências, cultura e alegrias foi a “festa dos povos” na noite de passagem de ano. Recebemos 2014 em oração nas paróquias e, ao toque das doze badaladas, fomos para a rua festejar. A paróquia preparou-nos uma mesa bem composta e, juntos, partilhámos as primeiras horas do ano, numa animada e espontânea festa. O primeiro dia do ano também foi passado nas paróquias e famílias de acolhimento. De manhã, participámos numa animada celebração eucarística, à qual se seguiu um almoço com as famílias com quem estivemos durante estes dias de encontro.
Enraizámo-nos em Cristo e, porventura, nas amizades criadas, mas há que partir. Agora, sinto-me chamado a pôr em prática, no dia a dia, o desafio lançado: “procurar modos de tornar mais visível esta comunhão e de, através disso, nos tornarmos mais capazes de criar uma nova solidariedade entre todos os homens”. Sinto os obstáculos, mas, na abertura e no respeito, conseguirei os meios para tornar visível o perdão e a reconciliação e assim contribuir para a reconstrução efetiva e afetiva do Corpo de Cristo.
Caminhar torna-se-me a palavra de ordem! Em 2013, a comunidade de Taizé foi ao encontro dos jovens asiáticos, este ano irá escutar os jovens da América. Mais uma etapa nesta peregrinação. O próximo encontro europeu será na capital da República Checa, Praga, cidade que se situa no centro desta nossa bela e frágil Europa.
José Carlos Ferreira Pereira